quarta-feira, 18 de junho de 2008

Debaixo

Está debaixo da cama há duas horas, talvez mais. Agora não pode sair, senão, apanham-no. Não interessa ter-se portado bem, hoje nem fez os trabalhos. Tem de ficar exposto ao escuro mais algum tempo, o escuro que lhe empalidece a derme. Nessa, abriu uma boca nova, mais uma que se silencia. Esta nova morde-se, trazendo uma dor quente à perna.Pior que o escuro é não haver mais ninguém debaixo da cama. Seria mais fácil enfrentá-lo de mãos dadas. Mas ele tem-nas fortes, decididas, de dedos nodosos que um dia demorarão a decomporem-se. Olhando de relance, detemo-nos no seu sorriso contagiante. Claro que não o vemos sorrir porque sabemos que soluça por dentro. Diz-se ter uma aura que combate o breu.Da crença em outros demónios, infere-se que este, criança, possui uma carcassa musculada. Inalterável pelas horas, chega a alimentar-se do gradual colapso do organismo pela fome. Nem está muito frio debaixo da cama, acho que vai permanecer lá. Só mais uma hora.

2 comentários:

Lucia disse...

Quando era criança espreitava debaixo da cama antes de dormir para ter a certeza que não havia lá nada.

LR disse...

Li há tempos sobre "Debaixo":


"Suspiro. Um. E outro. Mais outro. E outro. Outra vez. Muitas vezes. Até voltar. O ar. Estabilizar. A respiração. Que faltou. Que fugiu. Que se escondeu. Numa cama. Noutra cama. A minha? Não... Sim. Sim? E porque não?

Lindo, lindo, lindo. E agora calo-me. Perante este texto, (mais) palavras para quê?"


E guardei.